Friday, May 20, 2022


Brinquedas

Bendito sois vós entre as mulheres. Bendito é o fruto do vosso ventre... Mas será que todo fruto é bendito, mesmo que ele tenha sido forçado a nascer, a amadurecer?

Todo Benedito ou Benedita vem do ventre. Não é assim?

Nas primeiras cenas do vídeo Brinquedas, vê-se apenas um deles, – entre milhões iguais a este ventre – coberto por um pano grosso, forte, desbotado.  Um shorts jeans. As barras, nas duas pernas, estão viradas como se fossem um artifício para encurtar o shorts. Movimentos lentos para frente e para trás. Mas fica evidente, desde o início, que não se terá um número de dança do ventre. Não. Este ventre, na tela, está cheio. Estufado. Inchado. Vultuoso. Cheio de benditos e benditas? Quem sabe?

Este ventre, até então, não tem rosto. Tem apenas duas mãos – e nos dedos anulares, anéis; no da direita uma estrela e no da esqueda, o símbolo do universo –  que em poucos segundos começarão a fazer algo que o expectador não tem ideia do que estão prestes a realizar. As mãos aparecem inesperadamente, batendo no ventre com uma certa força. Escuta-se então uma voz, em off: “Eu sou o seu ventre.” Estas mesmas mãos passam a acariciá-lo. E ao puxar o volume por debaixo do pano grosso, é possível ver, de relance, um pano de cetim amarelo ouro. Possivelmente, o material usado para um outro shorts. Nota-se também, uma capa (ou a continuação de uma camisa longa) preta, de renda, caindo pelos dois lados do corpo de uma mulher. Ainda sem rosto, ela diz: “Eu sou o berço da criação.” Daí, sabemos que esse ventre é quem vai “falar” com o expectador.

Num determinado momento, uma das mãos abre o zíper. Vemos a primeira coisa a sair dali, daquele ventre: um chumaço de cabelo. De plástico. Com uma certa dificuldade, as duas retiram uma boneca! Serão seis ao todo ao longo do vídeo, cuja duração é de  5m16s. Confesso que a sexta a ser retirada, me “forçou” a pensar em fórceps. Todas as bonecas são literalmente jogadas ao chão.

A voz menciona que precisamos falar sobre a legalização do aborto, mas também outras formas de aborto: as ideias, os projetos e os sonhos abortados.

Assim que elas – todas são bonecas – saem de dentro daquele ventre através da abertura do zíper, de todas as cores e do mesmo formato, são feitas de plástico (Pela Mattel? Pela Estrela?), a guerra cultural e jurídica que está acontecendo, neste exato momento, nos Estados Unidos veio à minha mente. Como num raio. A famosa lei Roe v Wade a qual os republicanos retrógrados, ultrapassados e bolorentos (chamá-los(las) de conservadores seria até um elogio. Longe disso. Extremistas seria a palavra mais adequada.) querem revogar, passando por cima de mais de meio século de história ianque. No que consiste esta lei norteamericana? A proteção da mulher, prevista na Constituição daquele país, pelo seu direito de escolha de ter um aborto. Por seu julgamento próprio. Por sua vontade e desejo próprios. No início da década dos anos 70, a Suprema Corte norteamericana havia posto fim aos cabides de roupas, aos chás milagrosos, aos saltos de árvores altas e qualquer outro método desumano que era utilizado durante e para um aborto. O que, antes disso, era ilegal. Claro. A partir do endosso da Suprema Corte, toda mulher norteamericana pôde então entrar pela porta de um hospital, uma clínica ou um ambulatório hospitalar e receber a ajuda profissional para que seu desejo fosse assim concretizado.

 

Ao desabotoar o shorts, as mãos deixam ver o outro shorts de cetim amarelo ouro junto com a voz que diz: “Seu ventre precisa estar limpo. Livre das marcas. Limpe seu ventre, mulher. E a sua criatividade voltará abundante e você voltará a parir a realidade que você quiser.”

Enquanto as mãos vão como que protegendo o ventre pela última vez, ouvimos a respiração dessa mulher. A câmera vai subindo pelo corpo. Vemos sua barriga e  a camisa de renda abaixar até ela. As mãos agora cobrem e passam pelo rosto dessa mulher que inspira e expira, deixando cair seus braços ao seu lado. O rosto coberto por um véu negro. Os braços, as mãos, o corpo pertencem à performer Cristiane Moura.

O vídeo é um alerta. Um aviso. Um chamado. Para todas (e por que não todos em solo brasileiro?). Ao vê-lo, o que eu retenho é que (além da mensagem de liberarmos nossa criatividade) precisamos, sim, dar um basta aos cabides de roupas, aos chás milagrosos e aos saltos de árvores altas. As brasileiras precisam, sim, adentrar a porta de um hospital, de cabeça erguida – e benditas –  obter o que seu próprio corpo e mente lhes dizem e pedem: ser livre.