Marília Pêra faria aniversário hoje, dia 22 janeiro de 2016. Infelizmente, ela nos deixou em dezembro passado. E como minha pequena homenagem à esta grande atriz, reescrevo aqui, a entrevista que fiz com ela, em Nova York, em meados dos anos 90.
Ganhadora de um prêmio internacional oferecido pelos críticos cinematográficos de Nova York pelo filme Pixote
, de Hector Babenco, na década dos anos oitenta, Marília Pêra é, sem dúvida, uma das
maiores estrelas do teatro e cinema brasileiros.Tive o prazer e a feliciade de compartilhar algumas horas com Marília Pêra, numa tarde de inverno, em Nova York, onde conversamos sobre o início de sua carreira, vida particular, o papel da mulher nos palcos brasileiros, os novos talentos e seus futuros projetos.
Wilson: Como é seu nome completo?
Marília: O meu nome de nascença, de batismo é Marília Soares Pêra. Eu me casei aos dezessete anos com um homem chamado Paulo César da Graça Melo. Eu nunca me separei dele porque ele morreu num desastre de carro. Então, meu nome nos documentos é Marília Pêra da Graça Melo. Eu fiquei com o nome de casada, mas sou viúva oficialmente. E Marília Pêra, meu nome artístico.
Wilson: Nunca soube seu nome por inteiro...
Marília: Eu acho que nunca ninguém me perguntou isso. Eu sou Soares, também. Meu pai se chamava Manuel Maria Soares.
Wilson: Eu sei que sua família é de teatro e você também teve experiência com o circo. Mas quando é que você começou sua carreira como atriz?
Marília: A minha mãe conta que eu entrei em cena, pela primeira vez, no colo de uma amiga dela no Teatro Santana, em São Paulo, aos dezenove dias de idade. Mas, pelas minhas pernas, eu entrei, em cena, quando eu tinha quatro anos na peça
Medéia, de Eurípedes.
Wilson: Eu acho que sua paixão sempre foi o teatro...
Marília: A minha paixão sempre foi... quero dizer, a minha primeira paixão foi o balé. Quando eu era criança, eu queria ser bailarina. O meu pai, que era um homem muito ligado à música clássica, queria que eu estudasse piano. Eu estudei dez anos de piano para agradar a ele. Na verdade, eu comecei muito cedo a fazer balé clássico. Eu queria ser bailarina clássica. Bem, como vivia no meio de atores e atrizes, minha paixão passou a ser o teatro. Hoje em dia, eu continuo adorando o teatro porque ele é a arte do ator. Eu gosto muito de modificar as coisas. Eu nunca faço uma peça, um espetáculo igual ao outro. É um método, nem melhor nem pior. Chico Anísio, por exemplo, que é um fantástico ator, diz que faz exatamente as mesmas coisas todos os dias. Eu não. Eu gosto muito de brincar. De modificar. E o teatro dá esta possibilidade de melhorar. Acho que a televisão é importantíssima para divulgar o artista ao público nacionalmente, e o cinema é importantíssimo para jogar este artista no mundo. E foi por causa do
Pixote que eu ganhei um prêmio internacional de cinema que eu nem esperava.
Wilson: Concorrendo junto com você estavam Fay Dunaway...
Marília: Fay, Diane Keaton e algumas outras.
Wilson: Marília, qual foi o seu primeiro filme?
Marília: Olha. Não me lembro o nome dele, mas há um filme que meu pai fez com o Grande Otelo... talvez... Luz Dos Meus Olhos, que penso até que minha avó também trabalhou nele. Eu tenho um pequeno take, assim batendo palmas. Este foi o meu primeiro filme. Mais um monte de filmes que meu pai fez de mim... dançando, em 16 mm, que já se perdeu... Mas, profissionalmente, foi O Homem que Comprou o Mundo, de Eduardo Coutinho, em 1967.
Wilson: E no teatro, qual foi o seu primeiro prêmio? O Fala Baixo de Leilah Assunção?
Marília: Sim, o meu primeiro Molière, eu ganhei com Fala Baixo Senão Eu Grito, em 1969.
Wilson: Então, você já estava fazendo cinema e teatro trambém...
Marília: Desde que eu estreei fazendo Medéia, aos quatro anos, eu fiz várias peças com aquela idade. Vários dramas psicológicos. Sempre que precisavam de uma criança, eu estava lá. Dos onze aos dezenove, eu fiz muito balé clássico. Eu era bailarina clássica no circo. Fazia ponta e tudo. Fui ao México, Argentina, Chile... Foi aí que eu comecei, pela primeira vez, a fazer algumas imitações de Carmen Miranda, no México, em 1964. Mas muito antes disso, quando tinha quinze anos, sempre como bailarina clássica, eu fiz uma revista que se chamava De Cabral a JK, de J. Mayer e Max Nunes que trabalha com o Jô Soares até hoje. Foi ali que conheci meu primeiro marido. Fiz uma série de revistas, sempre como bailarina clássica, na Praça Tiradentes. Trabalhei com o Colé. Trabalhei grávida. Depois viajei por todos aqueles países e quando voltei, em 1964, estavam abertos os testes para Como Vencer na Vida Sem Fazer Força. Os americanos foram ao Rio para fazer os testes e o papel principal estava entre Elis Regina e Terezinha Mayo. Elis não era nada conhecida; nem eu. Ela estava chegando do sul e a Terezinha já havia feito algumas peças como atriz, mas era muito jovem. Uma era excelente atriz e a outra, excelente cantora. Os diretores e coreógrafos já me conheciam de My Fair Lady. Eu fui bailarina naquela peça com Bibi Ferreira. Eu furei a onda dos ensaios, onde o diretor não queria uma bailarina fazendo o papel principal. Fui até os americanos e lhes implorei que me deixassem fazer o teste. Fiz e ganhei. Foi aí que comecei mesmo minha carreira de teatro.
Wilson: Uma coisa que eu queria lhe perguntar... Eu sou fã da Elis...
Marília: Eu também. A maior cantora que o Brasil já teve.
Wilson: Acho muito interessante você mencionar o seu processo de teatro que nunca é o mesmo. Elis fazia exatamente isso em suas interpretações...
Marília: Eu também, mas nem tanto quanto ela. A Elis dava três saltos mortais sem rede, não é? Eu faço isso um pouco. Eu arrisco muito...
Wilson: E uma das coisas que mais me emocionaram em seu único filme, em inglês, Mixed Blood, de Paul Morrisey, é você usando um button com a foto da Elis...
Marília: É a Elis... Eu sou louca por ela. É uma honra mesmo. Eu gosto de muitas cantoras brasileiras, mas para mim, não existe, jamais existirá alguém como Elis.
Wilson: Um fenômeno...
Marília: É, um fenômeno. Um gênio. Mas o que foi horrível é que ela morreu no dia em que eu estava vindo a Nova York para receber o prêmio pelo Pixote. No mesmo dia. Fiquei assim: Por que é que ela fez isso comigo? Naquele dia, acordei toda feliz. Tinha feito as malas no dia anterior. Toda feliz que eu estava vindo para Nova York, quando recebi a notícia. Ao voltar ao Brasil, li todas aquelas matérias que escreveram sobre ela. Me tranquei em casa, no Rio, durante o Carnaval, e comecei a escrever cartas para os jornais, reclamando da falta de respeito deles com a Elis.
Wilson: E o cinema nacional, Marília?
Marília: Você sabe.. eu sou uma atriz que começou a ser chamada para fazer cinema muito tarde. Eu fiz o filme do Eduardo Coutinho, em 1967, e depois fiz pequeninas pontas em dois filmes e até 1975, eu não tinha sido chamada para fazer nada. Eu não sei se os diretores de cinema, naquela época, não iam ao teatro. E eu era uma atriz de teatro, não era uma atriz essencialmente de televisão. Ou se meu tipo físico não era adequado para uma estrela como eram Adriana Prieto, Sônia Braga, Hossana Guessa, Darlene Glória, Dina Sfat, Leila Diniz, Irene Stefânia, Odete Lara... Talvez o meu tipo físico não se adequasse. Não sei o porquê, mas eu não era chamada. Foi uma sorte quando eu fui conhecer o Hector Babenco que estava para fazer O Rei da Noite, com Paulo José. Ele não me conhecia e queria a Dina Sfat ou a Darlene Glória, mas as duas não podiam. O Paulo foi quem insistiu com o Hector para que eu fizesse o papel. O Hector nem me dava bola durante a filmagem; me aceitou por causa do Paulo. Depois ele comentou que com o filme montado, ele percebeu que eu tinha feito um bom trabalho. Então, por causa de O Rei da Noite, ele me chamou para o Pixote que me abriu um leque de possibilidades. Eram quinze minutos de filme que ele não havia escrito para mim. Quero dizer, o cinema entra na minha vida muito esporadicamente. Eu não sei como anda o cinema nacional.
Acabo de fazer Tieta, uma ideia da Sônia Braga que é co-produtora e dona do filme junto com americanos e italianos. Ela foi quem chamou o Cacá para dirigi-lo. Cinema no Brasil é muito difícil, o filme, muito caro... Mas, embora com algumas situações ainda precárias, foi a melhor produção do cinema que eu já trabalhei. Como está o cinema nacional? Eu não tenho a menor ideia. Diretor brasileiro não deixa o ator ver o copião. É triste. Aqui, quando fiz o filme com o Paul Morrisey, nós viamos os copiões todas as semanas. Era muito divertido. A gente mudava coisas... Mas lá, eles não deixam.
Wilson: O que você tem feito no teatro?
Marília: Nos anos retrasado e passado, fiz uma excursão por todo o Brasil com Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde, numa terceira versão, completamente diferente onde eu fazia até uma meio-Madonna, no final. Uma versão de uma hora e vinte que foi um grande sucesso outra vez. Dirigi algumas peças nos últimos anos, além de Irma Vap -- o meu maior sucesso como diretora -- uma peça francesa sobre Pierre e Marie Curie, em São Paulo. E agora, estou voltando para o Brasil para começar a gravar uma novela pela TV Plus, uma tevê independente que veincula na Bandeirantes. Uma novela que se chama O Campeão. Gravo até o fim de abril e daí vou a São Paulo para começar a ensaiar Master Class, de Terrence McNally, baseado em Maria Callas. Assim que cheguei a Nova York, fui ver esta peça porque eu tinha lido n'O Globo o que uma jornalista que mora aqui escreveu: "Marília Pêra, vá ver Master Class, compre os direitos, antes que alguma aventureira..." Eu fui, mas não quis comprar, não, porque estou muito cansada desta história de produzir, dirigir, interpretar e tomar conta de tudo. É um desgaste muito grande. Vi a peça com minhas filhas e pensei que o papel pudesse ficar para a Fernanda Montenegro, a Beatriz Segal ou a Irene Ravache...para uma das grandes atrizes brasileiras. Daí, recebi um telefonema do Jorge Takla, um diretor de São Paulo que mexe muito com ópera e louco por Maria Callas, me perguntando se eu iria fazer ou não porque a Fernanda queria fazer. Ela faria maravilhosamente. A atriz americana é fantástica. Ela até parece um pouco assim com a Fernanda, o jeito...
Wilson: Mas eu te vejo mais no papel...
Marília: Porque eu tenho mais ligação com ópera do que as outras atrizes brasileiras. Eu acho também que eu tenho mais a idade da personagem. E o Takla tinha que resolver logo e se eu dissesse sim, ele iria montar a peça em julho. Ele tem o teatro Cultura Artística, em São Paulo. Enfim, eu vou fazer o comecinho da novela, saio para a estreia da peça e volto para terminar a novela. Existe também a possibilidade de eu participar, no próximo ano, de uma peça aqui em Nova York, no teatro Intar (off-Broadway), uma ideia da Maria Duha, com direção de Max Ferra.
Wilson: Qual é a sua opinião sobre a mulher brasileira no teatro?
Marília: Eu não sei como é nos outros paises, mas no Brasil, o teatro brasileiro é um matriarcado mesmo. Embora tenhamos excelentes atores, eu percebo agora que para cada dez grandes atrizes novas, há dois grandes atores. Esta é a média. Eu acho que o palco brasileiro é principalmente das mulheres, sem desmerecer alguns atores extraordinários. Mas a mulher está na frente, no palco.
Wilson: E de um modo geral?
Marília: A mulher brasileira em relação à mulher americana? A mulher brasileira é mais carinhosa, delicada, amorosa. Mais mulher mesmo. Eu sinto que as americanas têm mania de falar com a gente como a dona Margarida, não é? Sinto-me como se fosse uma criança, meio débil mental quando falam comigo. Acho que é uma coisa de atitude... meio rude. Acho que a mulher brasileira é mais delicada, mais permissiva... Os filhos, em geral, das mulheres brasileiras, aprontam mais porque elas deixam mais... (Risadas)
Wilson: Quantos filhos você tem?
Marília: Eu tenho duas filhas e um filho. O Ricardo tem 34 anos. É um senhor, já. A Esperança faz vinte e um agora em março e a Nina quinze. As meninas moram aqui, em Nova York, com o Nelsinho Motta. Estão estudando inglês, canto, drama...
Wilson: Eu concordo com você quando diz que o palco brasileiro é das mulheres. Quando se fala em teatro, pensa-se logo...
Marília: ... nas estrelas. Nas grandes atrizes.
Wilson: A não ser Paulo Autran...
Marília: Sim. Paulo Autran, Nanini, Walmor Chagas, Raul Cortez... Fernanda... Irene Ravache... e as novas: Débora Boch, Fernandinha Torres, Cláudia Raia, Cláudia Abreu, Giulia Gam, Glória Pires, Patrícia Pilar... Se você me perguntar sobre um jovem ator, eu terei que ficar pensando um tempinho, assim... Você viu quantas jovens atrizes eu sei? Um jovem ator? Eu posso estar cometendo uma injustiça, mas não me lembro. Uma outra coisa sobre as mulheres... é que eu estou aqui em Nova York desde o comecinho de novembro e conheci mulheres extraordinárias. Tive contatos muito mais profundos com mulheres do que com homens. Aliás, não conheci nenhum homem assim com quem eu ficasse mais intimamente ligada. A minha professora de inglês, a Dorothea, que é uma americana, é uma fadinha pequenininha, de olhos azuis, uma pessoa da maior bondade. A Iara Zuniga, uma amiga e companheira que sempre me acompanha quando vou assistir a concertos e óperas no Lincoln Center. A assistente do meu dentista, a Kellen, é brasileira do Paraná. A Deli, minha manicure e a minha professora de canto, a Stela Brandão... Pessoas que eu conheci aqui e que ficaram íntimas. Pessoas com quem eu posso contar.
Wilson: E você passou receitas de crochê e tricô para elas?
Marília: (Risadas) Mas elas me ensinaram muitas coisas...
Wilson: Porque os homens não passam nada...
Marília: (Mais risadas)