Brinquedas
Bendito sois vós
entre as mulheres. Bendito é o fruto do vosso ventre... Mas será que todo fruto
é bendito, mesmo que ele tenha sido forçado a nascer, a amadurecer?
Todo Benedito ou
Benedita vem do ventre. Não é assim?
Nas primeiras
cenas do vídeo Brinquedas, vê-se
apenas um deles, – entre milhões iguais a este ventre – coberto por um pano
grosso, forte, desbotado. Um shorts jeans. As barras, nas duas
pernas, estão viradas como se fossem um artifício para encurtar o shorts. Movimentos lentos para frente e
para trás. Mas fica evidente, desde o início, que não se terá um número de
dança do ventre. Não. Este ventre, na tela, está cheio. Estufado. Inchado.
Vultuoso. Cheio de benditos e benditas? Quem sabe?
Este ventre, até
então, não tem rosto. Tem apenas duas mãos – e nos dedos anulares, anéis; no da
direita uma estrela e no da esqueda, o símbolo do universo – que em poucos segundos começarão a fazer algo
que o expectador não tem ideia do que estão prestes a realizar. As mãos
aparecem inesperadamente, batendo no ventre com uma certa força. Escuta-se então
uma voz, em off: “Eu sou o seu
ventre.” Estas mesmas mãos passam a acariciá-lo. E ao puxar o volume por
debaixo do pano grosso, é possível ver, de relance, um pano de cetim amarelo
ouro. Possivelmente, o material usado para um outro shorts. Nota-se também, uma capa (ou a continuação de uma camisa
longa) preta, de renda, caindo pelos dois lados do corpo de uma mulher. Ainda
sem rosto, ela diz: “Eu sou o berço da criação.” Daí, sabemos que esse ventre é
quem vai “falar” com o expectador.
Num determinado
momento, uma das mãos abre o zíper. Vemos a primeira coisa a sair dali, daquele
ventre: um chumaço de cabelo. De plástico. Com uma certa dificuldade, as duas
retiram uma boneca! Serão seis ao todo ao longo do vídeo, cuja duração é
de 5m16s. Confesso que a sexta a ser
retirada, me “forçou” a pensar em fórceps. Todas as bonecas são literalmente
jogadas ao chão.
A voz menciona que
precisamos falar sobre a legalização do aborto, mas também outras formas de
aborto: as ideias, os projetos e os sonhos abortados.
Assim que elas –
todas são bonecas – saem de dentro
daquele ventre através da abertura do zíper, de todas as cores e do mesmo
formato, são feitas de plástico (Pela Mattel? Pela Estrela?), a guerra cultural
e jurídica que está acontecendo, neste exato momento, nos Estados Unidos veio à
minha mente. Como num raio. A famosa lei Roe
v Wade a qual os republicanos retrógrados, ultrapassados e bolorentos
(chamá-los(las) de conservadores seria até um elogio. Longe disso. Extremistas
seria a palavra mais adequada.) querem revogar, passando por cima de mais de meio
século de história ianque. No que consiste esta lei norteamericana? A proteção
da mulher, prevista na Constituição daquele país, pelo seu direito de escolha
de ter um aborto. Por seu julgamento próprio. Por sua vontade e desejo próprios.
No início da década dos anos 70, a Suprema Corte norteamericana havia posto fim
aos cabides de roupas, aos chás milagrosos, aos saltos de árvores altas e
qualquer outro método desumano que era utilizado durante e para um aborto. O
que, antes disso, era ilegal. Claro. A partir do endosso da Suprema Corte, toda
mulher norteamericana pôde então entrar pela porta de um hospital, uma clínica
ou um ambulatório hospitalar e receber a ajuda profissional para que seu desejo
fosse assim concretizado.
Ao desabotoar o shorts, as mãos deixam ver o outro shorts de cetim amarelo ouro junto com a
voz que diz: “Seu ventre precisa estar limpo. Livre das marcas. Limpe seu
ventre, mulher. E a sua criatividade voltará abundante e você voltará a parir a
realidade que você quiser.”
Enquanto as mãos
vão como que protegendo o ventre pela última vez, ouvimos a respiração dessa
mulher. A câmera vai subindo pelo corpo. Vemos sua barriga e a camisa de renda abaixar até ela. As mãos
agora cobrem e passam pelo rosto dessa mulher que inspira e expira, deixando
cair seus braços ao seu lado. O rosto coberto por um véu negro. Os braços, as
mãos, o corpo pertencem à performer Cristiane Moura.
O vídeo é um
alerta. Um aviso. Um chamado. Para todas (e por que não todos em solo brasileiro?). Ao vê-lo, o que eu retenho é que (além
da mensagem de liberarmos nossa criatividade) precisamos, sim, dar um basta aos
cabides de roupas, aos chás milagrosos e aos saltos de árvores altas. As
brasileiras precisam, sim, adentrar a porta de um hospital, de cabeça erguida –
e benditas – obter o que seu próprio
corpo e mente lhes dizem e pedem: ser livre.
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