DEMOS
Devo confessar
que quando li a palavra Demos – título da performance de Luca Lima – lembrei-me, de imediato, de que o sufixo
Demo, em Latim, quer dizer povo. Já a
palavra Demos – sim, ela existe, em grego – significava as subdivisões de
terras em áreas rurais na antiga Grécia.
E por falar em área,
nesse palco-não-palco porque se assemelha mais a uma quadra de esportes (galpão?
sala de ensaio?) é onde o performer nos falará. Logo nos primeiros segundos,
vê-se uma placa de saída, no entanto, para a surpresa do espectador, é por onde
entra o nosso performer. Nosso porque a partir do momento em que ele entra, melhor,
invade a sala como uma enxurrada de água bem-vinda, torna-se nosso, sem dúvida.
Grita. Marcando ali o seu mundo. O nosso
também. Por, pelo menos, 23 minutos.
Todo de preto,
descalço, com os cabelos longos e um brinco que, vez ou outra, reluz na parca
iluminação que se faz amarelada devido a cor das paredes descascadas desse
local, o performer fala direto para a câmera. Fala conosco. Direto. Sem
filtro. É a câmera fazendo o papel da
gente. A gente fazendo o papel da câmera. Ela (nós) se distancia e se aproxima
do performer conforme com o que ele diz e questiona. E para mais uma surpresa
minha, logo no comecinho, ele menciona o povo. Sim, eu tinha razão!
São vários os
temas que ele vai nos apresentando como, por exemplo, a possibilidade de ser
artista neste país, a tolerância, o encantamento (por onde andará?), a empatia,
ser controlado (pelo sistema), o mercado em todos os sentidos e as ideias que,
segundo ele, estão em baixa. Aliás, assim que diz isso, ele se joga, sem medo
no chão.
Quando o
performer menciona que o artista exaustivamente morre e renasce, atrás de si,
na parede, surgem duas sombras: uma que é a sua e de braços abertos e a do videomaker segurando sua câmera cuja
lente nada mais é (ou tem sido até então) o nosso olho. Sempre atento a este
performer.
Discorre sobre o
mito do resnascer das cinzas (abrindo os braços como se fossem agora suas asas.
Lá atrás, na parede, a sua sombra nos confirma essa imagem) nas mitologias dos
povos antigos. Porque o que constata em sua leitura de alguns estudiosos acerca
disso, leva esse performer a querer compartilhar conosco como numa conversa –
ao mudar de tom – mais íntima, de quase pé de ouvido mesmo: “Igualzinho a
alguns problemas nossos que custam a desaparecer. Mas, batata!” Será que, em
sua época, os performers daqueles povos antigos também se questionavam dando
aos seus espectadores exemplos dos performers que vieram antes deles? Ou será
que antes deles mesmos só existiram as próprias fênixes as quais lhes serviram
de exemplo para se perpetuar ad infinitum?
É surpreendente quando o performer começa a
cantar que “o mundo está ao contrário e ninguém reparou.” E, sussurrando para
nós, joga a pergunta: “Alguém quer tentar a resposta?” Olhei em volta, e
percebi que estava sozinho, diante da tela de um computador onde assisto esta
performance. Percebi que este “alguém” poderia muito bem ser EU. Respondi ao
performer que eu não tinha (tenho) uma resposta, ou pelo menos, por enquanto
não a tenho. Quem me dera tê-la neste exato momento.
Luca menciona a
volta dos gorilas ao poder e não pude evitar de pensar em Elis Regina quando
deu uma entrevista, na França – nos anos 60 – declarando que o Brasil estava
sendo controlado por verdadeiros gorilas. Claro que, naquela época, a famosa
cantora pagou um preço por suas palavras, pois sofreu perseguições tendo sido até
interrogada pelos próprios gorilas num quartel qualquer em São Paulo quando de
sua volta ao país.
Ri muito quando
este performer nos dá uma receita de como comprar uma tapioca. Dando-nos até o
tempo adequado para o preparo da famosa guloseima(?) brasileira. Daqui, de onde
estou sentado, agradeci ao performer pela valiosa dica. E ao comparar o tempo
do preparo da mesma com o tempo que um projeto de lei possa ser aprovado (20
anos), ri ainda mais com o número de tapiocas que podem ser feitas e degustadas
naqueles anos todos, nada mais nada menos que 700.800 tapiocas. Ri.
Questiona se
deveria mesmo estar expondo todos esses temas por ser jovem ainda. Daqui, mais
uma vez, respondi: “Claro que sim. Por ser jovem é que tem que questionar,
berrar, não deixar passar em branco o que está aí nas nossas fuças. E seu
trabalho, Luca, é uma prova disso. Um trabalho de questionamento. De coragem.”
Diz que quer
sentir-se pertencendo e que talvez aí é que se encontre o sentido do teatro. O
pertencimento.
Em tom de
confissão, nos olha (através da câmera) e vaticina: “Sim, teatro ainda se faz
necessário. Ainda é uma saída. Uma possibilidade. […] Onde envelhecemos
juntos.” Traz, então, seu questionamento para a criança que não destingue
sensação e acontecimentos.
Abre os braços e
o peito (como se estivesse expondo o próprio coração) e começa a correr em
círculos dizendo a palavra “desacovardar” várias vezes. Continua correndo e
agora sua voz em eco, repete a mesma palavra. E termina dizendo que o povo é
livre graças à vida. Desta forma, voltamos ao começo da peça, feito o círculo
da vida. Ao mencionar a palavra “povo”,
vemos, então, em letras garrafais, sobre este tablado a própria palavra DEMOS.
Luca Lima é ator. Residente em Brasília, DF.
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