Monday, July 4, 2022

 


DEMOS

Devo confessar que quando li a palavra Demos – título da performance de Luca Lima  – lembrei-me, de imediato, de que o sufixo Demo, em Latim, quer dizer povo. Já  a palavra Demos – sim, ela existe, em grego – significava as subdivisões de terras em áreas rurais na antiga Grécia.

E por falar em área, nesse palco-não-palco porque se assemelha mais a uma quadra de esportes (galpão? sala de ensaio?) é onde o performer nos falará. Logo nos primeiros segundos, vê-se uma placa de saída, no entanto, para a surpresa do espectador, é por onde entra o nosso performer. Nosso porque a partir do momento em que ele entra, melhor, invade a sala como uma enxurrada de água bem-vinda, torna-se nosso, sem dúvida.  Grita. Marcando ali o seu mundo. O nosso também. Por, pelo menos, 23 minutos.

Todo de preto, descalço, com os cabelos longos e um brinco que, vez ou outra, reluz na parca iluminação que se faz amarelada devido a cor das paredes descascadas desse local, o performer fala direto para a câmera. Fala conosco. Direto. Sem filtro.  É a câmera fazendo o papel da gente. A gente fazendo o papel da câmera. Ela (nós) se distancia e se aproxima do performer conforme com o que ele diz e questiona. E para mais uma surpresa minha, logo no comecinho, ele menciona o povo. Sim, eu tinha razão!

São vários os temas que ele vai nos apresentando como, por exemplo, a possibilidade de ser artista neste país, a tolerância, o encantamento (por onde andará?), a empatia, ser controlado (pelo sistema), o mercado em todos os sentidos e as ideias que, segundo ele, estão em baixa. Aliás, assim que diz isso, ele se joga, sem medo no chão.

Quando o performer menciona que o artista exaustivamente morre e renasce, atrás de si, na parede, surgem duas sombras: uma que é a sua e de braços abertos e a do videomaker segurando sua câmera cuja lente nada mais é (ou tem sido até então) o nosso olho. Sempre atento a este performer.

Discorre sobre o mito do resnascer das cinzas (abrindo os braços como se fossem agora suas asas. Lá atrás, na parede, a sua sombra nos confirma essa imagem) nas mitologias dos povos antigos. Porque o que constata em sua leitura de alguns estudiosos acerca disso, leva esse performer a querer compartilhar conosco como numa conversa – ao mudar de tom – mais íntima, de quase pé de ouvido mesmo: “Igualzinho a alguns problemas nossos que custam a desaparecer. Mas, batata!” Será que, em sua época, os performers daqueles povos antigos também se questionavam dando aos seus espectadores exemplos dos performers que vieram antes deles? Ou será que antes deles mesmos só existiram as próprias fênixes as quais lhes serviram de exemplo para se perpetuar ad infinitum?

 É surpreendente quando o performer começa a cantar que “o mundo está ao contrário e ninguém reparou.” E, sussurrando para nós, joga a pergunta: “Alguém quer tentar a resposta?” Olhei em volta, e percebi que estava sozinho, diante da tela de um computador onde assisto esta performance. Percebi que este “alguém” poderia muito bem ser EU. Respondi ao performer que eu não tinha (tenho) uma resposta, ou pelo menos, por enquanto não a tenho. Quem me dera tê-la neste exato momento.

Luca menciona a volta dos gorilas ao poder e não pude evitar de pensar em Elis Regina quando deu uma entrevista, na França – nos anos 60 – declarando que o Brasil estava sendo controlado por verdadeiros gorilas. Claro que, naquela época, a famosa cantora pagou um preço por suas palavras, pois sofreu perseguições tendo sido até interrogada pelos próprios gorilas num quartel qualquer em São Paulo quando de sua volta ao país.

Ri muito quando este performer nos dá uma receita de como comprar uma tapioca. Dando-nos até o tempo adequado para o preparo da famosa guloseima(?) brasileira. Daqui, de onde estou sentado, agradeci ao performer pela valiosa dica. E ao comparar o tempo do preparo da mesma com o tempo que um projeto de lei possa ser aprovado (20 anos), ri ainda mais com o número de tapiocas que podem ser feitas e degustadas naqueles anos todos, nada mais nada menos que  700.800 tapiocas. Ri.

Questiona se deveria mesmo estar expondo todos esses temas por ser jovem ainda. Daqui, mais uma vez, respondi: “Claro que sim. Por ser jovem é que tem que questionar, berrar, não deixar passar em branco o que está aí nas nossas fuças. E seu trabalho, Luca, é uma prova disso. Um trabalho de questionamento. De coragem.”

Diz que quer sentir-se pertencendo e que talvez aí é que se encontre o sentido do teatro. O pertencimento.

Em tom de confissão, nos olha (através da câmera) e vaticina: “Sim, teatro ainda se faz necessário. Ainda é uma saída. Uma possibilidade. […] Onde envelhecemos juntos.” Traz, então, seu questionamento para a criança que não destingue sensação e acontecimentos.

Abre os braços e o peito (como se estivesse expondo o próprio coração) e começa a correr em círculos dizendo a palavra “desacovardar” várias vezes. Continua correndo e agora sua voz em eco, repete a mesma palavra. E termina dizendo que o povo é livre graças à vida. Desta forma, voltamos ao começo da peça, feito o círculo da vida. Ao  mencionar a palavra “povo”, vemos, então, em letras garrafais, sobre este tablado a própria palavra DEMOS.

Luca Lima é ator. Residente em Brasília, DF.

Friday, May 20, 2022


Brinquedas

Bendito sois vós entre as mulheres. Bendito é o fruto do vosso ventre... Mas será que todo fruto é bendito, mesmo que ele tenha sido forçado a nascer, a amadurecer?

Todo Benedito ou Benedita vem do ventre. Não é assim?

Nas primeiras cenas do vídeo Brinquedas, vê-se apenas um deles, – entre milhões iguais a este ventre – coberto por um pano grosso, forte, desbotado.  Um shorts jeans. As barras, nas duas pernas, estão viradas como se fossem um artifício para encurtar o shorts. Movimentos lentos para frente e para trás. Mas fica evidente, desde o início, que não se terá um número de dança do ventre. Não. Este ventre, na tela, está cheio. Estufado. Inchado. Vultuoso. Cheio de benditos e benditas? Quem sabe?

Este ventre, até então, não tem rosto. Tem apenas duas mãos – e nos dedos anulares, anéis; no da direita uma estrela e no da esqueda, o símbolo do universo –  que em poucos segundos começarão a fazer algo que o expectador não tem ideia do que estão prestes a realizar. As mãos aparecem inesperadamente, batendo no ventre com uma certa força. Escuta-se então uma voz, em off: “Eu sou o seu ventre.” Estas mesmas mãos passam a acariciá-lo. E ao puxar o volume por debaixo do pano grosso, é possível ver, de relance, um pano de cetim amarelo ouro. Possivelmente, o material usado para um outro shorts. Nota-se também, uma capa (ou a continuação de uma camisa longa) preta, de renda, caindo pelos dois lados do corpo de uma mulher. Ainda sem rosto, ela diz: “Eu sou o berço da criação.” Daí, sabemos que esse ventre é quem vai “falar” com o expectador.

Num determinado momento, uma das mãos abre o zíper. Vemos a primeira coisa a sair dali, daquele ventre: um chumaço de cabelo. De plástico. Com uma certa dificuldade, as duas retiram uma boneca! Serão seis ao todo ao longo do vídeo, cuja duração é de  5m16s. Confesso que a sexta a ser retirada, me “forçou” a pensar em fórceps. Todas as bonecas são literalmente jogadas ao chão.

A voz menciona que precisamos falar sobre a legalização do aborto, mas também outras formas de aborto: as ideias, os projetos e os sonhos abortados.

Assim que elas – todas são bonecas – saem de dentro daquele ventre através da abertura do zíper, de todas as cores e do mesmo formato, são feitas de plástico (Pela Mattel? Pela Estrela?), a guerra cultural e jurídica que está acontecendo, neste exato momento, nos Estados Unidos veio à minha mente. Como num raio. A famosa lei Roe v Wade a qual os republicanos retrógrados, ultrapassados e bolorentos (chamá-los(las) de conservadores seria até um elogio. Longe disso. Extremistas seria a palavra mais adequada.) querem revogar, passando por cima de mais de meio século de história ianque. No que consiste esta lei norteamericana? A proteção da mulher, prevista na Constituição daquele país, pelo seu direito de escolha de ter um aborto. Por seu julgamento próprio. Por sua vontade e desejo próprios. No início da década dos anos 70, a Suprema Corte norteamericana havia posto fim aos cabides de roupas, aos chás milagrosos, aos saltos de árvores altas e qualquer outro método desumano que era utilizado durante e para um aborto. O que, antes disso, era ilegal. Claro. A partir do endosso da Suprema Corte, toda mulher norteamericana pôde então entrar pela porta de um hospital, uma clínica ou um ambulatório hospitalar e receber a ajuda profissional para que seu desejo fosse assim concretizado.

 

Ao desabotoar o shorts, as mãos deixam ver o outro shorts de cetim amarelo ouro junto com a voz que diz: “Seu ventre precisa estar limpo. Livre das marcas. Limpe seu ventre, mulher. E a sua criatividade voltará abundante e você voltará a parir a realidade que você quiser.”

Enquanto as mãos vão como que protegendo o ventre pela última vez, ouvimos a respiração dessa mulher. A câmera vai subindo pelo corpo. Vemos sua barriga e  a camisa de renda abaixar até ela. As mãos agora cobrem e passam pelo rosto dessa mulher que inspira e expira, deixando cair seus braços ao seu lado. O rosto coberto por um véu negro. Os braços, as mãos, o corpo pertencem à performer Cristiane Moura.

O vídeo é um alerta. Um aviso. Um chamado. Para todas (e por que não todos em solo brasileiro?). Ao vê-lo, o que eu retenho é que (além da mensagem de liberarmos nossa criatividade) precisamos, sim, dar um basta aos cabides de roupas, aos chás milagrosos e aos saltos de árvores altas. As brasileiras precisam, sim, adentrar a porta de um hospital, de cabeça erguida – e benditas –  obter o que seu próprio corpo e mente lhes dizem e pedem: ser livre.